08/01/2008

* Tá ruím? Acrescenta ovo que fica bom...






Sobre galinhas, mães e avós dos ovos de ouro!

foto: llunkes




Àquela tenra idade eu não tinha a menor sombra de dúvida : a galinha havia surgido primeiro, antes do ovo. Era óbvio ! Era completamente dispensável todo o arsenal filosófico e metafísico de torturantes indagações sobre a origem da existência dessa classe de seres animados. Bastava acompanhar a minha avó materna ao potreiro do sítio , onde dezenas dessas plumadas terrestres andavam a se refestelar alegres e rebolentas, por entre as vacas e as ovelhas, a gozar de suas liberdades orgânicas e espaçosas - coisa rara hoje em dia considerando as condições miseráveis e desumanas a que são submetidas pela cruel indústria aviária. Eram todas momentaneamente felizes e, provavelmente, nem sabiam disso. Entretanto, era uma felicidade, digamos, com um certo prazo... pelo menos para duas delas. Seriam o jantar daquela noite.

Era com a típica curiosidade infantil que eu acompanhava a minha querida avó naquelas divertidas perseguiçoes-ao-assado-da-noite. Seguia os seus passos lentos mas sabiamente calculados. Agarrar as bichinhas escolhidas não era a atividade mais confortável para essa senhora de proporções engrandecidas e idade já avançada. Eu, no meu agitado intuito de ajudá-la, só deixava as pobrezinhas das penosas mais excitadas e enlouquecidas, com o coração literalmente saltando bico afora.

Os alvos eram sempre as mais velhas, as que a natureza já havia imposto um ritmo produtivo mais desprivilegiado. Como os ovos dessas poedeiras eram mais escassos seria de bom tom que, na ordem lógica do mundo, elas fossem as sacrificadas da vez.

Pois bem, assim que as "meninas" eram capturadas vinha a parte intermediária do processo, a parte mais "creepy" e estranhamente repulsivo-atrativa : degolá-las através de firmes rodopios que lembravam os giros de coloridos cataventos; dependurá-las de cabeças para baixo - ainda convulsivas - para drenar os seus viscosos sangues escarlates; escaldá-las em fumegantes baldes de água fervente; depená-las pacienciosamente e mergulhá-las "en passant" pelas infernais chamas de uma fogueira para depilar as rebeldes penugenzinhas que não haviam sido removidas pela água quente. ( atenção: não tente isso em casa...ainda aconselho a cera a frio! ). Depois de desnudas, seriam cirurgicamente abertas e suas víceras removidas.

E era exatamente nesse estágio da aventura quando meus olhos faiscavam. Era como descobrir um tesouro pirata enterrado nas profundezas de uma caverna sinistra. O que emergia daquelas escuras e macabras entranhas eram contrastantes "bolas de gude" de diversos tamanhos e de uma cor alaranjada tão intensa, tão vivida, tão vitrificada que poderia jurar que eram pedras preciosas, gemas incrustradas numa argila densa e obscura. E, de uma certa forma, não deixavam de ser pois eram literalmente...gemas! Eram ovos incompletos em diferentes estágios de maturação que provavelmente veriam a luz do dia ao raiar das próximas manhãs que se seguiram àquele prazeiroso final de tarde.

Na hora de separar o joio do trigo daquele emaranhado viceral, minha avó removia esses fascinantes projetos de ovos cuidadosamente para não rompê-los e os dispunha num recipiente a parte. "O que será que faria com eles?" tentava imaginar.

Naquela mesma noite a reposta caira de pára-quedas dentro do meu prato, aquele primeiro que antecedera o prato principal que vinha a ser o assado. Lá estavam elas!! Boiando delicada e sincronizadamente ... exibindo-se frágil e deliciosamente na minha sopa. Eram verdadeiras relíquias, douradas delicatesses à espera do momento de serem perfuradas para extravazar os seus adocicados e complexos fluídos para dentro daquele imbatível caldo. " Ah, a vida simples é boa...quase sempre! "

***


Esse arroubo todo de nostalgia em forma de lembranças infantis não surgiu nesse momento ao mero acaso. Lendo o The New York Times online acabei de topar com um artigo sobre uma nova onda gastronômica que está invadindo a Big Apple, importada da Itália : ovos precoces. Aqueles mesmos que tão generosamente povoam parte das minhas mais queridas lembranças ao redor de minha preciosa e já falecida avó estão, neste exato momento, sendo redescobertos pelos top chefes mundo afora.

Considerados iguarias pelo seu inigualável aroma aprofundado, adocicado e mais leve que uma gema normal, esses circulares nonatos estão chegando às mesas de templos gastronômicos nas mais variadas formas de extravagantes guloseimas. Que interessante esse vai-e-volta do carrossel do tempo !


Mas mudando um pouco de saco pra mala...


Estava no carro com uma grande amiga. Íamos os dois à feira orgânica do brique num sábado pela manhã. O assunto era "infância, mães e comidas". Ela me contou uma muito engraçada da coroa dela : diz que essa senhora ia à geladeira de tempos em tempos e descarregava todas as sobras de comidas dos dias anteriores. Jogava tudo dentro da frigideira e requentava. A medida que ia provando o "puchero" de misturas ia, entre carrancas de reprovação, acrescentando ovos, um atrás do outro até que, satisfeita, esboçasse um sorriso largo. Seu lema era : " ruim ? Acrescenta ovo que fica bom!" Rimos muito e imaginamos que bom seria se o ovo fosse a resposta para todos os males que afligem a humanidade: Tá ruim pagar tanto imposto? Acrescenta ovo que fica bom! Tá ruim ter que aturar o galinhão do marido? Acrescenta ovo que fica bom. Tá ruim o estresse da violência urbana? Acrescenta ovo que fica bom. Fácil, não é mesmo?

Adesso... nesse espírito de melhorar as nossas domesticadas vidas através do uso indiscriminado do ovo, vou terminar esse artigo com uma receita de uma fantástica frittata italiana. Depois você me conta o que mudou na sua sorte, va benne?? Buono Appetito!

***
Frittata de Pimentão e Cheddar

A frittata é um clássico italiano. Considerada a mãe do omelete (olha ai a mae de novo!!) por muitos historiadores ela difere deste pela forma bem mais simplificada e acessível de seu preparo. Por ser servida à temperatura ambiente ela torna-se ideal para almoços e brunches que envolvem um grande numero de pessoas. A sua tradicional versão tem sido provavelmente uma das opções mais populares em certas regiões da Itália nos períodos de abstinência durante a quaresma.


1 batata, descascada e cortada em cubos pequenos
2,5 colheres de sopa de óleo de oliva
1 pimentão vermelho, cortado em tiras
1 cebola roxa, cortada em cubos
4 dentes de alho, picados
3 colheres de sopa de orégano fresco, ou 1 de orégano seco
8 ovos caipiras
1 colher de chá de sal marinho
pimenta do reino a gosto
1 xícara de queijo cheddar ralado
4 colheres de sopa de parmesão ralado
pitada de noz moscada


Modo de fazer:

1. Cozinhe a batata em água salgada até ficar macia. Escorra.
2. Numa frigideira de fundo grosso, aqueça o óleo de oliva e salteie a cebola até ficar translúcida. Adicione o alho, a batata, o pimentão e o orégano. Cozinhe por mais alguns minutos.
3. Num recipiente, bata os ovos, o sal, a noz moscada e a pimenta. Adicione os queijos. Adicione essa mistura aos vegetais e leve ao forno a 180C.
4. Asse a frittata até começar a dourar . Retire do forno. Deixe esfriar por uns 5 minutos.
5. Desenforme. Corte em fatias e sirva com uma salada incrementada de folhas.

Serve 4 pessoas
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6 comentários:

Anônimo disse...

Oi Lu,

ADOREI os textos! Tu escreves bem prá caramba... Só não precisava esculhambar tanto com Porto Alegre!!! Agora, se existem tantos tipos de sal no mundo e eles fazem tudo isso por uma comida.... vou ter que concordar um pouco contigo. Afora o sal marinho que eu já uso a tempo por razões outras tipo a pureza e a não contaminaçao dos quimicos usados na purificaçao do dito e, maldito agora sal fino, eu não tinha noção da existencia de outros sabores de sal. Fiquei muito curiosa...
Hoje farei a frittata que deste a receita. Adoro ovo! Depois te conto o resultado. Ah, eu também comia as geminhas quando criança. Eram disputadas a tapas com meus irmãos....
Marcia

Anônimo disse...

Lu,
Na sexta de noite fiz a frittata na praia e foi um sucesso. Acompanhei com uma salada de verdes emolho quente de cogumelos com aceto balsamico e ficou muito bom. Melhorou o humor e o estomago, que estava ruinzinho nas ultimas 48 horas.
bjus
Marcia

Luciano Lunkes disse...

Marcia,
que legal. Tenho outras receitas barbaras de frittata. E' so dar um grito que te mando. Te vejo no ensaio. beijos

Luciano Lunkes disse...

Marcia, os sais que citei no artigo sao somente alguns exemplos de uma grande gama de variedades que existem por ai. Pena que no Brasil as coisas levam decadas para chegar....isso quando chegam a aterrissar por essa bandas...well...ces't la vie, nao e' mesmo? Bj

Isabel (pipoka) disse...

Luciano,

Adorei o seu blog! Ainda ontem postei lá uma frittata de curgetes (aboborinhas) e já só estou pensando em fazer esta sua receita!
Obrigada pela sua visita lá no threefatladies...é sempre bom receber elogios de um profissional como vc!

bj

Luciano Lunkes disse...

Legal, Pipoka..
adoro a versatilidade das fritatta...vou dar uma checada na que voce postou. Não dou a menor bola pra essa historia bobona de ovo e colesterol Como uns 3 ovos por dia e o meu colesterol ruim é sempre baixo.Um luxo!!! heheh
obrigado pela visita e parabéns pelas "três gordinhas"...elas arrasaram!!
beijo