13/01/2008

* as dádivas do paladar vendado

Puramente modismo? Vou explicar porque é que não...

Sobre os "dark dinings", a nova-nem-tanto tendência conceitual dos jantares às escuras...


Começo dos anos 90. A gastronomia era para mim algo tão distante quanto as crateras de Marte, os anéis de Saturno ou até as elípticas espirais de Andrómeda. Meu mundo era predominantemente aural. A música era o meu único sol por onde eu transladava feito uma rechonchuda bola de ferro fundido girando em torno de seu único ponto luminoso e incandescente.


Eu havia recém terminado o bacharelado em regência coral e parido o Vocal Mandrialis, um grupo formado por músicos, estudantes de música e cantores experientes provenientes de outros coros. Buscávamos, a exemplo de outros trabalhos, algo que fosse além das inexpressivas performances estáticas e engessadas de um coral tradicional. Queríamos, do topo de nossas juventudes arrogantes e corajosas, quebrar com a "barreira do som" e incorporar a essa linguagem outras manifestações da expressão humana.


Foi aí que embarcamos numa viagem - sem volta, eu diria - pelas misteriosas profundezas do teatro. O que restou na bagagem daqueles incríveis anos de laboratório foi a sólida certeza de que há outros mundos paralelos além daqueles que se revelam diante de nossos olhos. Percebemos que essas mesmas "janelas" que nos permitem ver a colorida paisagem lá fora, concomitantemente, nos "cega".


Foi dentro dessa atmosfera de busca por caminhos alternativos para o Mandrialis que fui cair numa oficina de teatro ministrada pelo paulista Irion Nolasco de onde a "grande revelação" me foi presenteada através de um exercício proposto: duas pessoas formariam uma parceria onde o primeiro indivíduo seria o silencioso guia do segundo. Este último, ficaria de olhos hermeticamente vendados pelas 4 horas que se seguiriam.


A única forma de comunicação entre os parceiros seria através do contato de um dos dedos mindinhos de cada pessoa. Os dois dedos fundiriam-se um no outro e jamais se desprenderiam durante toda a extensão do experimento, gerando uma curiosa figura de complexidade siamesa. O primeiro parceiro iria, através de comandos digitais improvisados, guiar o seu "deficiente" companheiro levando-o a experimentar o mundo através dos outros sentidos que ficariam teoricamente mais ativados. Ok. Parecia divertido e fácil e fiz questão de tomar a frente e ser a parte que seria conduzida.


Já nos primeiros instantes da experiência, porém, o blackout foi total!! Curto circuito! Pânico! Estranhamento de ambas as partes. Não havia nada a que se agarrar, nada em que se proteger. A comunicação oral era expressamente proibida entre o par e teríamos que estabelecer uma cumplicidade silenciosa e urgente e chegar a um entendimento instintivo de como fazer com que aquilo funcionasse sem que ninguém se machucasse.


Pequenos acidentes, obviamente, ocorreram. Alguns tropeços, esbarrões e cabeçadas foram inevitáveis. Porém, parecia que aos poucos a divina providência ia assoprando nos nossos agudos ouvidos as fórmulas mágicas exigidas para fazer com que aqueles dois dedos alienígenas dialogassem entre eles com a mesma fluência de desinibidas comadres latinas.

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Após os primeiros 60 minutos, eu já estava completamente familiarizado com o breu e contornando as adversidades. O paralisante medo cedeu lugar ao "administrável" e o corpo alerta encarregou-se de afinar os sentidos para o que estava por vir. Eu estava finalmente pronto para discorrer pelos vários ambientes e re-perceber o habitual mundo sob a égide das novas leis que passaram a regê-lo a partir daquele momento. O que se sucedeu revelou-se então surpreendente.

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Como explicar como é um filme 3D para uma pessoa que nunca colocou seus olhos num ? Você até pode. Com palavras. Mas palavras são meros fantasmas comparando com a coisa real em si. Mas vamos lá ...

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Após o período de ajustamento do corpo físico e emocional a essa nova realidade circunstancial, portas sensoriais começaram a abrir-se uma após a outra. Em uma sequência do tipo efeito dominó, os demais sentidos começaram a saltar aos "olhos" e colocar na luz um mundo até então submerso que potencializava sensações jamais sentidas naquela intensidade ou até jamais experimentadas anteriormente. Meus olfato, audição, paladar e tato estavam, literalmente, à flor da pele.

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Eu era capaz de escutavar os sons aparentemente mais inaudíveis e distantes; cheirar os aromas até mais vagos e diluidos; sentir as mais sutis correntezas de ar a percorrer eletricamente a minha pele; degustar os alimentos de uma forma tão mais intensa, tão deliciosamente complexa! Outros sabores estavam lá. Sabores esses que eu jamais havia provado antes numa simples mordida de uma maçã, numa colherada de um ingênuo iogurte natural... Honestamente, não dá para explicar. Só experimentando. É muito emocionante mesmo.

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E é essa exatamente a intenção desses tão em voga "dark dinings" : fazer você entrar nessa busca interna de encontro a você mesmo e conectar-se com todo o seu potencial perceptivo ampliando a maneira como você se relaciona com o seu próprio mundo. Tudo isso usando a gastronomia como ponto de partida.

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Modismo? Talvez sim. Pode até ser que, em questão de meses, ninguém mais fale neles. Mas se você for uma pessoa com uma veia aventureira e entregar-se à essa marcante viagem, você vai experienciar algo que vai perdurar na sua memória. Para sempre.É um caminho fascinante ... sem volta, eu diria !

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