15/12/2007

* fábulas palacianas : memórias de um chef em reinos distantes






a

francesinha

e o

dragão chinês




Os aposentos da Rainha localizavam-se no quinto piso, à altura do último compartimento da torre, bem longe das destravadas bocas da criadagem, mas – certamente - ao alcance dos maliciosos ouvidos que a Senhora Soberana havia infiltrado pelas espessas paredes do castelo. Havia sempre, na abafada cozinha real, uma atmosfera de frívola conspiração, de furtiva alegria, de compartilhado sigilo, de afiados - mas cautelosos- sussurros entre os que por lá transitavam. Era sabido que tudo o que se sucedia naquele recinto - que se situava no porão do palácio e para onde todos convergiam para abastecer-se de comida, seja ela real ou metafórica - chegava sorrateiramente aos ouvidos da Magnânima. O devido cuidado era, portanto, mais que necessário. Era uma questão de sobrevivência.


O chef, dentre todos os subalternos, era o único ser dessa estirpe que gozava de um certo status quo de respeito e reverência. Todos na corte, estrategicamente, gostavam dele – afinal, não era lá muito prudente se indispor com o sujeito que preparava o alimento que, algumas horas mais tarde, iria acabar nas suas entranhas. Só por precaução.


Os mais diversos assuntos animavam essa oprimida, porém bem disposta classe trabalhadora. Desde temas de unânime sucesso como a nonagésima sétima cirurgia plástica da Soberana (que havia lhe conferido uma indiscutível semelhança com uma das “Mademoiselles d’ Avignon” - obra de um importante pintor de um reino distante) até questões de ordem cósmica menos relevantes, como os relatos tragicômicos sobre outros cozinheiros reais, cujas cabeças haviam rolado sob a ação das afiadas navalhas “nada fashion” de importadas guilhotinas . Tudo era farta e alegremente veiculado nos intervalos dos afazeres normais do dia. Dentre esses contos, havia o da chef francesa, trazida num tórrido verão de temperaturas escaldantes e tempestades súbitas para distrair a aborrecida Rainha e sua impertinente corte. O que realmente me impressionou nesse depoimento foi a ousadia e o desprendimento dessa intrigante personagem:

A Rainha Versátille, que nunca descia de seu firmamento celeste, encaminhara à cozinha o seu mensageiro oficial para averiguar se, dentre os distintos talentos culinários da nova cozinheira, constava algum registro do tipo “culinária chinesa”. Como o aconselhável, de acordo com o “Manual de Sobrevivência dos Servidores da Realeza Mimada (o bíblico MSSRM)”, é sempre acenar um “sim, certamente” com a cabeça quando esse tipo de situação impõe-se, o tal membro superior dessa senhorinha deslocou-se – apreensivamente, mas deslocou-se - num movimento vertical inconfundível . “ Va bene!”- diz o mensageiro - “Domani teremos um banquete cinese. Prepare-se para cinquanta invitati. O jantar inizia alle ore 20 ”, concluiu e desapareceu inexplicavelmente pelos luxuosos e atentos corredores do palácio.

As trombetas reais soaram a largada. A criadagem foi imediatamente acionada. As personalidades mais importantes de um determinado segmento do reino estariam presentes àquele evento temático: constelações de destacados designers, cantores pop, popstars, movie stars, costureiros, rappers, fotógrafos, figurinistas, diretores . Nada poderia estar fora de contexto. Seria inconcebível! A severa Rainha Versátille puniria o infrator com as devidas medidas .

Começou-se, então, a agitação dos preparativos da já-pra-lá-de-manjada (mas nem por isso mais tolerada pelos criados ) “festinha-de-última-hora”. A prataria deveria ser polida. As delicadas flores, as incontáveis velas e as apropriadas lanternas chinesas seriam encomendadas. As porcelanas caras – dentre as milhares que existiam na copa real - deveriam ser consistentemente escolhidas e, cuidadosamente, lustradas. Os guardanapos de linho branco ficariam devidamente engomados e “origami-mente” dobrados. Um séquito de servidores provisórios como garçons-modelos, bartenders-modelos, músicos-modelos, djs-modelos, mestres de cerimônia-modelos, iluminadores-modelos, maquiadores-modelos, manicures-modelos, cabelereiros-modelos , copeiras e ajudantes de cozinha (??) tinha que ser providenciado. O cardápio carecia ser criteriosamente estabelecido e os insumos, as especiarias, os woks, os chopsticks e o chá verde necessitavam ser urgentemente adquiridos. Não havia tempo a perder.

Enquanto cada um, apreensivamente, tratava de executar a sua parte , a família real, alheia às pequenas mazelas dos pequenos e comodamente acolchoada por seus guarda-costas (modelos!) inchados e bonitões, de óculos escuros e sorrisos perolados, lançava-se ávida e levianamente às avenidas -fashion a empapar-se de jóias, sapatos e vestidos “out of this world” para exibi-los “casually” naquela recepçãozinha-bem-básica. Não há nada mais “amazing” do que a monarquia!

Na noite da festa, tudo parecia em ordem. Aliás, tudo estava em ordem, indeed!! O palácio estava impecável. Os polpudos corrimãos dourados das amplas e retorcidas escadarias do saguão principal, reluziam para quem quisesse retocar a maquiagem ou até ajeitar as sedosas meias sob os “out-of-this-world” trajes . Os pontiagudos brincos, candelabros e castiçais de diamantes e cristais radiavam luminescência e a música pentatônica no ar embalava-se em um swing “lounge”. Os garçons-modelos circulavam com a elegância de bailarinos, cerimoniosamente alinhados.

A maioria dos comensais já havia chegado. Aos poucos, as dopantes espumantes se encarregavam de desencarcerar as desnudas risadas dos mais desinibidos, as sugestivas conversas dos mais ousados, os amaciados olhares dos mais galantes, os libertinos movimentos dos mais cortejadores. O clima de adagio pomposo com que a festa havia timidamente começado, rapidamente cedera lugar ao animado allegro ma non troppo - passando de raspão pelo civilizado andante - mas já se encaminhava, às pressas, para um histérico prestissimo ... assim... em questão de uma hora e 20 cosmopolitans de bergamota (!!! ...how clever...) mais tarde. Os últimos “esperados” já acenavam a sua presença . Estavam todos prontos.

Um mensageiro-modelo havia sido enviado ao porão para comunicar a francesinha. Esta se encontrava a tragar calmamente o seu cigarro com uma irrepreensível quietude zen de quem sabia que os deuses mandarins estavam todos ao seu lado. Estava tudo sob controle. “ Em breve, a cena cinese deverá ser servida.”

De volta ao salão, o ambiente encontrava-se surdo. As gargalhadas (agora incontidas), os gritos desvairados , os uivos desconcertados espremiam-se e acotovelavam-se num asfixiado instinto de encontrar uma molécula de ar - que seja - que não estivesse ocupada . A Rainha demonstrava uma discreta impaciência com a demora da chef, notada apenas pelos mais íntimos pela maneira como a sua peculiar fala de onça cativa ficara ainda mais incompreensível. O som da campainha, que acabara de soar, diluiu-se nos exóticos ding-dongs da ensurdecedora música tecnoriental, confundindo até os ouvidos mais atentos . Ding-dong mais uma vez e, finalmente, as patológicas atenções voltaram-se para o portal de entrada com aquela típica curiosidade de quem quer verificar quem seria esta intrometida persona que ninguém espera e que esta' ali a impor a sua presença.

O mordomo-modelo recorre à porta e desta emerge sinistramente um sujeito que, sem a menor sombra de dúvida, julgara que aquela festa era, obviamente, a caráter. Todos olharam pasmos para aquele serzinho de um metro e meio, de pele transparente, de cabelos negros, longos e trançados , de um contrastante e amigável sorriso, olhinhos repuxados e um sotaque inconfundível que, “corcundado” pelo peso da carga que transportava, anunciava-se animadamente: “delively!!”. O pobre infeliz, num lapso de santa inocência, havia confundido a entrada de serviço pela descomunal porta principal do palácio.


schhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhhifttt !!! ...


Façamos, por favor, um minuto de silêncio ... outra cabeca acabou de rolar ! Que lástima !


***


Voltando a um tempo mais confortável....Certo dia, estava esse que vos fala na cozinha a cuidar das intermináveis tarefas diárias. Encontrava-me ainda impressionado com o episódio da francesinha que fora devorada, impiedosamente, pela besta chinesa.O mensageiro da “Soberbana”, meio que surgindo out of the blue, pigarreando anunciou a sua nobre presença. A Benevolente Senhora o havia mandado à cozinha em missão especial : averiguar com esse novo chef se, dentre os distintos talentos culinários dele, constava algum registro do tipo “ culinária chinesa” (!!!!!!!!)


Oh, oh...


Como alguém que acabara de engasgar-se num sapo desencantado, a resposta saiu coaxada e arenosa como o som do guincho de uma carroça em seu inerte movimento de freagem: “SSSSiiiim, certameeeeeen !”, murmurei num sofrido e suado falsete. Tão pouco convincente afirmativa foi, estranhamente, seguida de um desproporcional e confiante entusiasmo:“ Va bene!!!! Esteja pronto in trenta minuti!!


Whaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaatttttttttttttt????!!!!


30 minuti??????!!!!!


A única coisa que me veio à mente era, naquele momento de incômoda vertigem , a projeção de uma cena onde a Tirana Soberana - com a sua já consagrada cara de máscara africana, seu bronzeado de latão oxidado e sua mitólogica voz de dragão sonolento cujas pirotécnicas baforadas já haviam se extinguido há algumas centenas de drinkes atrás - grunhia aos obedientes guardas (logo após o seu quase envenenamento) e , com suas afiadas e super-longas garras postiças encarnadas , apontava em minha direção:


"à masmoooooooooooooorra com ele!!!"

O que se sucedeu foi, no mínimo, cômico senão trágico. Mas isso são outros quinhentos. Por hora é isso. Conto o resto dessa fábula em outra ocasião. Agora me deu fome ...vou para a masmorra, digo, para a cozinha preparar uns dumplings !! Inté.

6 comentários:

Anônimo disse...

this is great

Anônimo disse...

Quando vais escrever a segunda parte? Estamos curisos para saber fim! Fiz o curso de cozinha vietnamita contigo na Gourmandise. ADOREI!!!

Luciano Lunkes disse...

Legal, Cristina. Olha so, a segunda parte - que prometo ser mais engracada - esta para sair a qualquer momento. Vou precisar da permissao da Rainha Versatille para publica-la...hehehe...

Anônimo disse...

Cara, essa história tá muito engraçada...isso aconteceu mesmo? Quando vai escrever a segunda parte? To mandando todos os meus amigos lerem...
abraço

Daniel Ortega

Anônimo disse...

À masmôôôôôôôôrra com o chefinho!! Está divertidíssimo!!! Ri muito!
bj

Luciano Lunkes disse...

ângela
vais chorar na continuação dele....hehehe...bj