14/02/2008

* a malvada carne : churrasquinho à la "pampa" ou "Pompéia" ?



Era uma manhã radiante. Um domingo de ventos acalorados e cigarras buzinantes. Da caminhonete, que encontrava-se a pastar no gramado do jardim da casa, ouvia-se o relinchar de uma estridente e bem-humorada gaita que dialogava contrapontisticamente com uma voz guasca, de textura mal barbeada e velocidade bem aguda: "i-nhéco-nhéco-nhéco-tcha-tcha-TCHÁ : Uma chamAAAAArra, uma foguEEEEEEEEEira, uma chinOOOOOOOOOca, uma ch..."

Junto à churrasqueira, o gauchão-bonachão manuseava os carregados espetos de troncudas carnes com a mesma agilidade de quem joga uma dançante partida de fla-flu. Já à meia guampa, o sapateante vivente pisoteava euforicamente as semicolcheias e fusas que eram velozmente cuspidas pelas vazadas ventanas daquela contagiante sanfona.

Um cheirinho intoxicante de carne assada se alastrava pelo ar destilando as aquosas salivas dos que estavam submersos naquela invisível névoa de odor convidativo: as prrrrendas que se aprrrressem pois o churrrAAAsco esta prrronto! trovejou o bonachão. Sua majestade - a carne - não poderia esperar. Corre–corre-pra-cá, corre-corre-pra-lá e, sete minutos mais tarde, a família toda se alojava comodamente ao redor da mesa fartamente posta.

As atenções voltaram-se, então, para o churrasqueiro e o empalado naco de bezerro assado que estava prestes a fartar a sitiada mesa. Num movimento quase olímpico, o gorducho guapo mira o seu alvo e lança o dardo em direção ao centro e, num upa digno de um espadachim, decepa uma generosa fatia de picanha que cai inerte e desequilibradamente para dentro do prato da prenda-mãe.

Ouve-se um instantâneo entrevero de ecos de ohs! de ahs! de ais! de uis! e de ecas-melecas! A prenda-velha, ao ver aquela carne a purgar um hemorrágico líquido vermelho desprende um inesperado e horripilante grito-de-Munch e cai desamparadamente ao chão, espatifando a repolhuda hortência que ornamentava os seus longos-e-negros-cabelos-de-Perla. Reação em cadeia. As gauchinhas e os gauchinhos, num somatizado efeito dominó, repetem o exemplo da china véia. Instalou-se, então, uma micro catarse familiar. Oigalê! - trompeteou ironicamente o guri mais velho para o pai embretado - o bichano está ainda aporreAAAdo ! e corre para acudir a nocauteada madre. A la pucha ! responde o véio sem saber mais o que dizer em meio a tantos narizes empinados, olhos revirados e beicinhos repugnados.

Corre-corre-de-novo. Abanam-se os que foram ao chão ajeitando-os de volta às cadeiras. Servem-lhes outro mate quente. O animal é retornado às chamas e às pressas! Recorre-se ao volume da música numa tentiva de distrair os aparentemente mais nervosos: "...se troveja a gritariAAAAAAAAAAAAAAA, já relampEEEj...". O nivel da adrenalina coletiva, aos poucos, começa a recuar a níveis mais administráveis.

Com os humores já restaurados - meia hora mais tarde - e a carne novamente submetida a mais uma sessão de bronzeamento radical, o gauchão anima-se a repropô-la para a sua ainda faminta prole. Dessa vez, porém, resolve sujeitar a bovina criatura aos exigentes paladares antes de expô-la a um previsível embaraço à mesa. Corta outro naco, crava-o na afinada ponta de sua adaga e desfila por entre os olhares desconfiados e inquisidores. A carne, que àquela altura ja' apresentava uma tonalidade cansada, foi mais uma vez embargada pela rigorosa inspeção arqui-inimiga. Algo nela sugeria - não sabiam exatamente o que – que talvez necessitasse de mais alguns reflexivos minutos na brasa. Ou melhor, vários ! ..."só para se ter a certeza que!"

O gauchão desolado e de orgulho e paciência pra-lá-de-torrados, retorna ao fogo mais uma vez acompanhado de seu rejeitado animalzinho, disposto a não ouvir mais choramingos e reclamações de quem quer que seja. Cozinhou os espetos ao ponto. Quero dizer, ao ponto de não ser mais possível reconhecer seus conteúdos como algo que já fora partes de um quadrúpede vivo. Eram distorcidos e retorcidos restos arqueológicos, irrecuperáveis cadáveres que pareciam resgatados de agonizantes lavas ardentes. Eram fósseis estéreis de algo que já teve os seus dias de glória a ruminar pelas verdes coxilhas dos pampas, a beber a cristalina água das sangas, a respirar a azul liberdade dos pagos. Já era tarde, porém. Nem cem velas acesas ao negrinho do pastoreio, nem dez novenas à Virgem-Madrinha, nem cinqüenta chibatadas do gauchão trariam de volta aquele boizinho perdido nas vulcânicas querências daquela churraqueira.

Para surpresa - ou não, para ser bem honesto - a família atirou-se vorazmente sobre aqueles restos mortais a regozijar-se com tal prazer naquilo que chamavam - num entusiasmo de puro eufemismo - de um "delicioso churrasco". Eca-meleeeeeeeeeca!!!! digo eu e o coadjuvante gauchão que, num esforço estratégico de amnésia induzida, resolvera abandonar os acontecimentos recentes e almoçar o seu domingo na suculenta e solitária tranquilidade de sua mais fiel dentre as fiéis companheiras, a mal-passada da birita. Só para ter a certeza que! "AAAAA LA PUCHA!!... i-nhéco-nhéco-tcha-tcha-TCHÁ!"

***

Com a palavra, o Gauchão:

A la pucha: exprime admiração, espanto
À meia guampa: levemente bêbado
Aporreado: cavalo rebelde, indomável
Birita: trago, bebida alcoólica
Chamarra: ritmo campeiro de origem açoriana e madeirense
China: mulher com caracteristicas indígenas; esposa
Embretado: em apuros, enrrascado
Entrevero: desordem, confusão
Fla-flu: totó, pebolim, pacau
Guapo: forte, vigoroso, valente
Guasca: homem rústico, forte , valente
Num upa: num abrir e fechar de olhos, rapidamente
Oigalê: exprime espanto, admiração, alegria
Querência: lugar onde o gado é criado, lugar onde as pessoas nasceram ou vivem
Sanga: pequeno curso d’água , menor que um arroio
Vivente: pessoa, indivíduo


Bem gente, acho que chegou a hora de termos um papo sério sobre carne, não é mesmo?


Alegorias e dramalhões a parte, o texto acima, com o seu verniz caricato e brincalhão de teatro do absurdo, não é tão absurdo assim. Surpreendentemente. Já vi por esse Rio Grande afora toneladas de boa carne serem literalmente destruidas pela ação das incandescentes brasas, para a alegria geral de muitas papilas degustativas. Me causa um certo espanto - sem querer generalizar - perceber que uma terra, cuja cultura gastronômica tenha como o seu carro-chefe a carne bovina , saiba tirar tão pouco proveito do que ela tem de melhor a oferecer, seja por desinformação, preconceito ou quaisquer que sejam as verdadeiras razões . Eu tenho uma teoria sobre esse fenômeno, mas fica para outra oportunidade a sua exposição. A idéia aqui é simplesmente falar um pouco sobre a carne bovina e o que ocorre quando exposta a a algo tao radical quanto o fogo. Pois bem, vamos lá...

Sendo a água, em média, ¾ da composição da maioria dos alimentos, o ato de cozinhar para alguns top chefes e cientistas gastronômicos é definido como a simples ação de retirada de parte desse líquido atraves de uma fonte energética como o calor . O que distinguiria o bom cozinheiro de sua contraparte mediana seria a acurada percepção de saber exatamente em que momento esse processo deve ser interrompido. O fundamental seria, então, aprender a controlar e a dominar esse delicado equilíbrio.

A carne possui, de modo geral, 75% de água, 5% de gorduras, minerais e carboidratos e 20 % de proteínas que são agrupadas em feixes musculares como os vários fios coloridos dentro de um fio de telefone, por exemplo. A sensação de sua suculência provém da gordura intramuscular e da água residual após o seu cozimento além da produção das salivas provocadas ao ser ingerida.
Embora os sucos vermelhos sejam frequentemente confundidos com "sangue", na verdade eles são simplesmente soluções aquosas provenientes das células e fibras das proteínas. Esse líquido tem a semelhança com sangue porque contem hemoglobinas e mioglobinas que são também componentes do sangue. Uma das característias dessas "binas" é a mudança de cor quando expostas à temperaturas altas : vermelho brilhante à temperatura ambiente e marrom quando chegam perto dos 60 e 65 graus centígrados que é a zona de temperatura onde o colágeno (falaremos mais tarde nele) completa a sua conversão e é justamente a zona de temperatura que a sua carne está entre malpassada e "ao ponto" preservando ainda parte de seus preciosos sucos. A partir daí voce está rumo em direção ao desértico solo de marte.

À medida que uma carne é cozida, reações químicas são acionadas. A água entre as células é aquecida e se expande. Os ‘muros’ que separam as células se rompem misturando os aminoácidos e outros componentes químicos entre si gerando novas reações químicas e tranformando o sabor dessa carne. Isso explica porque um alimento cru (carne ou vegetal) possui um sabor completamente diferente após a sua cocção. Uma carne crua tem um gosto bem mais delicado do que uma carne cozida. Essa "crueza" é para a grande maioria das pessoas percebida como "desagradável" sendo que o "agradável" ao paladar emerge somente a partir de uma certa temperatura.

Quando o calor invade as fibras de proteínas de uma carne, estas encolhem-se e espremem os seus líquidos para fora deixando-a mais e mais firme. Você percebe isso nas carnes extremamente bem passadas que apresentam uma textura dura, esfarelenta e quebradiça.
Mas não são somente as proteínas que sofrem alterações durante a cocção. Os tecidos conectivos que unem as fibras mudam também. Numa carne crua o colágeno ( que é também uma proteína mas com diferente configuração) que mantém essa carne firme é endurecido e fibroso. À medida que o calor penetra, esse colágeno se converte numa espécie de gelatina . Quanto mais tempo de exposição ao calor, maior a quantidade de gelatina produzida. Por isso que cortes de textura mais rígida - que contém bem mais colágenos que os mais macios - para serem mais facilmente digeridos necessitam ser submetidos ao fogo baixo e a um longo tempo de cozimento.

A carne contém tambem açúcares naturais ( carboidratos) que, quando aquecidos desenvolvem uma gama de sabores e odores. Isso só irá ocorrer à uma temperatura superior a 150C. Essa é a razão pela qual carnes cozidas em líquidos tem um sabor diferente das assadas em altas temperaturas e explica porque desenvolvem uma cor distinta : a água não ultrapassa a marca dos 100C.
As gorduras internas também se alteram sob a ação do fogo, lubrificando as fibras de proteínas e deixando a sensação de maciez e suculência.

Para terminar gostaria de falar um pouco do que o americano chama de efeito "carry on". Quando uma carne é retirada do fogo o seu processo de cozimento não é imediatamente interrompido porque a sua temperatura interna continuará agindo sobre a peça. Quanto maior o objeto submetido, maior a sua energia acumulada e maior será o seu tempo de cozimento "passivo". Dependendo do tamanho do corte da carne, a temperatura residual poderá elevar a sua temperatura interna em até 10 graus centígrados. Esse "bônus" extra, quando não planejado, pode ser fatal para a qualidade do produto final que vai à mesa.

Por fim, os sucos que sob o efeito de altas temperaturas convergem ao centro da carne - seja por sua evaporação da crosta, seja pela pressão da temperatura externa que os empurra para dentro, sendo essa última considerada um mito pela gastronomia molecular de Hervé This - necessitam de um tempo de 10 a 15 minutos para serem redistribuidos deixando-a homogeneamente suculenta. Ao cortá-la sem respeitar essa margem de tempo, esses sucos vermelhos purgarão volumosamente dando a impressão de que ela está terrivelmente mal passada. Esse erro tão comum entre os churrasqueiros de plantão deixa a carne irreversivelmente ressecada e, paradoxalmente, boiando sobre um "sanguinolento" laguinho no prato. E é exatamente nesse momento que a china véia faz aquele fiasco todo e, num acesso inquisitório de total descontrole, condena o herege boizinho a arder novamente nas diabólicas chamas da "reparadoura" churrasqueira. Só para que ela tenha a certeza que! Santa sacanagem, Batman!! Por acaso alguém aí sabe onde foi parar a mal-passada da birita???!!
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3 comentários:

Anônimo disse...

Excelente artigo! Muito bem humorado, informativo, esclarecedor. Parabens chef!!
Ana Claudia

Anônimo disse...

AMIGO ESTÁS DE PARABENS , TEUS TEXTOS SÃO ÓTIMOS.AQUELE DA GALINHA HA HA EU VI O LUCIANO GURI CORRENDO ATRÁS DELAS. E DEPOIS ME VI ajudando matar de depenar galinha, o que aliás eu fazia muito bem e depois, COMENDO A GEMA COZIDA na SOPA QUE MINHA AVÓ FAZIA IGUALZINHO. Ana Helena

Luciano Lunkes disse...

essas memorias sao muito especiais mesmo, Ana Helena. Ficam com a gente pro resto da vida. De uma certa forma, elas sao parte do que somos. Beijo gostoso pra ti.


ah, obrigado Ana Claudia. Volte sempre!!